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Há muito tempo, um monge zen aventurou-se a sair num dia de inverno severo e viu, encolhido debaixo da ponte, um mendigo tremendo de frio. O monge tirou o próprio manto e jogou ao mendigo, que o vestiu, lançou ao monge um único olhar e nada disse. 

O monge não resistiu e falou: “E então? Está mais quente?”. 

A resposta foi certeira: “Claro, o que você acha? Não faça perguntas óbvias. Fique feliz por ter mantos para oferecer”. 

O monge, que estava esperando agradecimentos efusivos, ficou envergonhado ao perceber que o mendigo havia lido seus pensamentos. 

Se doamos dinheiro aos necessitados e não recebemos agradecimento, ficamos ofendidos e a nossa raiva cresce na mesma proporção da quantia oferecida. Isto porque, dentro de nós, grandes ofertas representam imensa bondade. Por exemplo, se não há reconhecimento quando fazemos um donativo de cem euros, ficamos irritados. Se a doação for de mil euros, a irritação é maior, e se for de cinquenta mil, a irritação também dá origem ao ressentimento e rancor. 

Em toda boa ação que praticamos, sempre há uma expectativa, que quando não é satisfeita, se transforma em sentimentos como indignação, ira, rancor ou mágoa. Por sempre existir esta expectativa de retorno, que na realidade é um interesse ou desejo pela recompensa por praticar uma boa ação, a filosofia budista ensina que as boas ações que praticamos são misturadas com veneno e que os seres humanos são incapazes da verdadeira bondade, 100% pura, sem nenhuma expectativa de retorno. Esta expectativa por algum tipo de retorno pela boa ação praticada é um “veneno”, pois quando ela não é satisfeita, surgem pensamentos e sentimentos maus, dentro de nós, como ódio, aversão ou desprezo.

Mas será possível praticar uma boa ação sem ter nenhuma expectativa de retorno? 

O famoso monge budista da Índia, Nagarjuna (150-250), respondeu a esta questão e expressou a realidade da bondade humana da seguinte forma: “Mesmo que você despeje duas ou três jarras de água fervente num lago congelado de quatro quilômetros quadrados e com isso tenha derretido uma parte do gelo, no dia seguinte, neste mesmo ponto, terá formado um volume ainda maior de gelo”. 

Isto significa que, ao praticar uma boa ação (despejar água fervente para derreter o gelo), mesmo que a área atingida pela água fervente se derreta por um momento (seja proporcionada uma felicidade ou bem-estar a partir da boa ação praticada), como sempre haverá uma expectativa de obter uma recompensa pela boa ação praticada (veneno), quando esta expectativa não é satisfeita, surgem imediatamente más ações mentais, como ira, indignação e rancor.

É bem provável que alguém pergunte: “Se fazer o bem por motivos puros é impossível, é preferível ser frio e insensível? É desnecessário sentir compaixão? Não precisamos praticar boas ações? Dizer isso não representa um encorajamento para as pessoas serem mais egoístas?”. 

Claro que não. É justamente o oposto. Quando vemos alguém em condições infelizes, nos entristecemos, ficamos cheios de compaixão. Mas apenas aqueles que se empenham com sinceridade, com todas as forças e de corpo e alma na prática do bem, é que percebem que, no íntimo, estão sendo vaidosos e presunçosos, ao se considerarem “muito caridosos”, e por isso, se surpreendem com a própria natureza, até ao ponto de ficarem chocados diante do egocentrismo que continua a se mascarar como virtude, contaminando nossos esforços mais sinceros. 

Quanto mais nos esforçamos para sermos verdadeiramente bons, mais tomamos consciência da profundidade da nossa “natureza egoísta” e mais somos levados a nos arrepender e a nos empenhar cada vez mais a fim de superar nossa tendência natural para o mal. 

É a partir deste diagnóstico mais minucioso, honesto e realista do ser humano, que a filosofia budista explica sobre o caminho para que todas as pessoas, tendo exatamente esta natureza humana, possam obter a felicidade plena e verdadeira nesta vida.

Podemos aprofundar o entendimento sobre as boas ações misturadas com veneno que praticamos, a partir da compreensão sobre o que é uma boa ação verdadeira, explicada no artigo “O caminho supremo da boa ação verdadeira”.

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Professor de filosofia budista, cultura japonesa e pensamento nipónico, autor, diretor de conteúdo e presidente da ITIMAN. Diretor internacional da Ichimannendo Publishing Co. Ltd. - Tóquio, Japão.

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